terça-feira, 6 de novembro de 2012

Miscelânea


Os democráticos

Na Póvoa de Varzim, a aclimatação da República foi um processo muito penoso: um jornal que o Prior apoiava foi censurado e depois encerrado e o Prior mandado para o exílio. O segundo administrador republicano foi corrido a tiro. Em Outubro de 1911, este ex-administrador reconheceu que ninguém no concelho queria a República. De facto leis como a da extinção das Ordens Religiosas ou a da Separação, que nacionalizou igrejas, capelas e passais, só podiam ser muito mal recebidas.
Havia então na Póvoa seis jornais: uns toleravam a República, O Comércio da Póvoa de Varzim, apoiado por Santos Graça, defendia-a contra ventos e marés e havia ainda dois semanários extremistas, o Intransigente e A Propaganda, que defendiam a linha mais dura e ridicularizavam repetidamente o oportunismo de Santos Graça e naturalmente se regozijavam com vitórias como a de Manual Joaquim de Almeida contra os democráticos. Estes, de democrático só tinham o nome, pois eram uma minoria que impunha os seus pontos de vista sem atender à vontade popular; mais adiante, vieram a colocar à frente da junta de Balasar um homem de tão baixos instintos como Lino Ferreira.

Uma vítima da República

A transcrição abaixo é fragmento dum escrito do balasarense P.e António Gomes Ferreira, então arcipreste; saiu em 20 de Maio de 1923 e evoca um episódio do tempo da República ocorrido na sua terra. A vítima era um sacerdote jesuíta escorraçado da sua residência.
Na freguesia propriamente dita, nos primeiros tempos, a República não terá feito grande estrago.

Os tempos foram passando e um dia rebentou a revolução de 5 de Outubro.
Os revolucionários por toda a parte perseguiam tudo o quer cheirasse a religião, espatifando tudo, arrastando tudo com uma fúria que dava a ideia que foram muitos manicómios que vomitaram para a rua os seus moradores. Tudo foi perseguido, mas nomeadamente os Jesuítas… Esses foram monteados como feras da pior espécie e passaram os trabalhos e as inclemências que se lêem com lágrimas nos Proscritos.
Por essa ocasião estava eu em minha casa de Balasar a tratar das vindimas e fui muito cedo para a igreja a fim de celebrar a Santa Missa (na actual igreja) e vir presidir aos trabalhos da minha casa.
E quando, depois de fazer a minha preparação, me dirigi à sacristia da Igreja para me paramentar, vi através dos vidros da janela um vulto que espreitava, cauteloso e com manifesto receio de ser descoberto.
Aproximei-me e reconheci o amigo de tantos anos, o Dr. Campos!
Corri logo à porta para lhe dar o abraço de saudade e certificá-lo de que ali, naquele remanso pacífico da nossa aldeia, ainda não tinha chegado a república, que estivesse sossegado.
O Dr. Campos contou os trabalhos que tinha tido para chegar ali da residência de Guimarães, onde se encontrava, sempre perseguido, na sua própria terra e pelos irmãos e patriotas.
Na sua freguesia, que tantas vezes lhe serviu de remanso, de paz e de conforto, ele encontrava sossego.
- Já dei parte ao Álvaro, diz-me ele assustado (algumas palavras ilegíveis), e quero ver se consegue passar-me para Espanha.
Que pena me causou esta cena e como eu desejei naquela ocasião ter uma eloquência de Demóstenes para mover os perseguidores a sentimentos humanos! E o Álvaro lá se mexeu, tomou as suas medidas, tudo preparou e seu caro tio, que nunca na vida fez mal a uma mosca, porque era a bondade em pessoa, lá passou a fronteira, onde, para vergonha nossa, foi encontrar repouso, segurança, estima e apreço que a pátria lhe negou. Vive ainda, para honra da família e da sua ordem, em terras do Brasil a espalhar os benefícios do seu ministério que a pátria não quis aproveitar escorraçando-o… como elemento perigoso.

Balasar espirra

Os jornais são uma fonte de informação importante para estes tempos, mas não a única. Em de Novembro de 1911, A Propaganda, num artigo intitulado “Balasar espirra”, bradava assim, a certa altura, sobre Balasar:

Espirrar vem a ser recalcitrar, dar uma atitude de bloco à maneira de responder às vontades leoninas de quem gosta de escrever torto em linhas direitas.
Com efeito, Balasar espirra e é justo que lhe digamos o Dominus tecum.
Em Balasar estão à sombra da República pretendendo legalizar umas trapalhadas monárquicas e, para bom nome e dignidade de todos, parece-nos justo que cada um se não faça de tolo e a justiça venha recta e imparcial a pôr um termo honroso aos pleitos que ali pendem.
A conclusão é lógica – o público impacientou-se, faz as mais acres censuras aos políticos que dispõem de todos os pedaços de terra e espirram, este é o termo, perante deliberações da Câmara onde a politiquice anda, tal e qual como no temo da monarquia, a servir amigos e correligionários, seja por que modo for, haja o prejuízo que houver, aconteça o que acontecer.
Da leitura da acta camarária da sessão desta semana foi-nos fornecida a seguinte nota:
Mandar deitar a baixo uma parede no prédio de José Fernandes de Carvalho, no prazo de 15 dias.
Idem, a José Lopes dos Santos Murado, uns esteios e umas arriostas, no prazo de 10 dias, sob pena de a Câmara proceder a desforço.
Luís Lopes Alves da Silva intimado a desobstruir uma regueira.
A Câmara cedeu à Confraria do Senhor da Cruz um caminho que sempre foi tido e havido como pertença do município, tanto que existe uma acta na Junta de Paróquia, datada de 1910, que assim o reconhece.
A Câmara resolveu transigir com Manuel da Costa Boucinhas num litígio que corre por este juízo sobre a propriedade dum caminho que sempre foi tido e havido como terreno municipal.
Também se falou mandar deitar abaixo uma parede ao Sr. Dr. João Gonçalves da Costa, considerando-se uma perseguição e uma violência àquele cavalheiro.
Diz-se em toda a parte publicamente se afirma que ainda não chegou a República a Balasar.
Efectivamente assim é, pois o caciquismo progressista está dando grosso quinau nas hostes regeneradoras.
O fim é palpável, visível a o lho nu, sem auxílio de óculos – os progressistas querem com as suas manigâncias continuar a viver na República com as normas do tempo da Realeza de tristíssima e ignominiosa memória.

Os progressistas eram naturalmente Manuel Joaquim de Almeida e seus aliados. Parece que as velhas rivalidades entre progressistas e regeneradores ainda valiam mais que as simpatias ou antipatias republicanas: “ainda não chegou a República a Balasar”.
O Intransigente já na semana anterior abordara os temas que aqui se ventilam – de um modo pouco claro para o leitor de hoje, reconheça-se – de modo mais sucinto, mas culpando directamente Santos Graça pelos erros que se cometiam.

Um arrependido

No Arquivo Municipal conservam-se listas de eleitores de Balasar desde 1871. Como indicam a idade dos votantes, o lugar da sua residência e mais tarde as suas habilitações académicas, o volume dos impostos que pagavam, fornecem muita informação aproveitável e que se não encontrara noutras fontes.
No mesmo arquivo, nos Livros dos Testamentos, deve-se conservar lá para uma centena de testamentos balasarenses, que vêm desde 1838. Estão lá os do Dr. João Gonçalves da Costa, atrás mencionado, o do pároco Manuel Fernandes de Sousa Campos e muitos outros deste tempo. Aqui vamos transcrever parte do de um tal António Alves de Sousa Campos (pelo nome parece irmão do pároco, mas pode não ser); data de 1890 e o testador faleceu no Rio de Janeiro em 1910.

E dispondo do temporal declaro, como acima fica dito, que sou filho António Alves de Sousa e Rita Alves e que por fraquezas humanas tive relações ilícitas com Ana Domingues da Costa Gomes, filha de António Domingues Gomes e Maria da Costa e Silva, de cujas fraquezas nasceu uma criança do sexo feminino a que se deu o nome de Felismina, a qual considero como filha minha e instituo por herdeira, assim como por iguais fraquezas tive relações com uma filha de José Domingues Martins e de Maria da Costa Lopes, do lugar de Gestrins, da mesma de Balasar, a qual nesta data se acha em estado de grávida, e por isso também instituo como meu herdeiro ou herdeira o fruto que esta der à luz e venha a salvamento, e isto se entende não só dos adquiridos como das legítimas paterna e materna que me possa pertencer por falecimento de meus pais, quando a eles sobreviver, mas com a condição destes meus herdeiros ou quem os representar se conformarem com as partilhas amigáveis que terão lugar por falecimento de meus pais, para o que deixo procuração com poderes especiais; e isto se entende quando os meus irmãos ou mais herdeiros do casal de meus pais com isto se conformem, pois não se o conformando estes e sendo as partilhas feitas judicialmente neste caso terão também os meus referidos herdeiros aquilo que por justiça lhes pertencer.

Corajoso este homem, que não negou a paternidade às crianças que eram do seu sangue! O seu comportamento foi o oposto de António Gonçalves Xavier.

Acta da Junta

As actas que conhecemos da Junta de Balasar não nos ajudaram muito a perceber o momento político dos primeiros anos da República. Por essa razão vamos apenas transcrever uma, de 1915: fala da antiga residência paroquial em ruínas que alguns queriam demolir para ajudar a cobrir os custos da obra do cemitério. 
A República de então parecia uma monarquia absoluta: uma decisão de tão pequeno alcance não podia ser tomada pela junta, nem pela câmara municipal, nem sequer por um ministro ou pelo governo, só pelo supremo magistrado da nação. 
A acta tem o mérito de dar uma lista bastante longa dos balasarenses do tempo, os que assinam apetição, e uma amostra da prosa um pouco pretensiosa, mas surpreendentemente bastante correcta de Cândido dos Santos.

Sessão ordinária de 3 de Janeiro de 1915
Aos três dias do mês de Janeiro do ano de mil novecentos e quinze, nesta freguesia de Balasar e sala das sessões da Junta de Paróquia Civil onde se achavam presentes Manuel Joaquim de Almeida, presidente da Junta, e os membros António Alves de Sousa, Manuel Lopes da Silva, António Lopes de Sousa Campos e Luís Alves de Sousa, à hora regulamentar, pelo Presidente foi aberta a sessão. Lida, aprovada e assinada por maioria a acta da sessão anterior, o Presidente, estranhando ver ali presentes muitos cidadãos desta freguesia, perguntou-lhes se desejavam da Junta da sua presidência alguma coisa, ao que um dos quais respondeu que vinham entregar a esta Junta uma petição que era do teor seguinte:
Senhor Presidente da Junta de Paróquia Civil da Freguesia de Balasar, concelho da Póvoa de Varzim:
Os paroquianos abaixo assinados, da freguesia de Balasar, concelho da Póvoa de Varzim, vêm respeitosamente, perante a Junta da Vossa presidência, pedir a fineza de fazer subir às instância superiores uma petição solicitando a graça de ceder a residência paroquial, que se acha em estado de ruína, a fim de que, com a importância do material dela ajudar a fazer face à despesa da realização do Cemitério Paroquial desta freguesia em construção, pois a dita residência não está em condições de ser habitada e além disso está a prejudicar a aludida obra, tornando-se portanto indispensável a sua demolição para conclusão da obra referida.
Por isso pedem os suplicantes à Junta da Vossa presidência o deferimento da sua petição.
E. R. M.cê.
Cândido Manuel dos Santos, José Alves dos Santos, Joaquim João Furtado Martins, João Ferreira Matias, João Domingues de Azevedo, José Fernandes Campos de Sousa, José Lopes dos Santos, João Alves dos Santos, José Lopes, António José Nogueira, Manuel da Costa Faria, José Joaquim Ferreira, António Lopes, Francisco José da Costa, José da Sila Oliveira, João Gonçalves dos Santos, António Fernandes da Silva Malta, António José da Costa, Manuel José Nogueira, a rogo de Emídio João da Silva e Manuel José Nogueira, José Francisco dos Santos, a rogo de José Francisco de Oliveira, José Francisco dos Santos, José da Costa Faria, José Fernandes Campos Fontinhas, António Lopes Alves da Silva, Joaquim da Costa Gomes, Celestino Domingues Martins, José Gomes da Costa, João Lopes da Silva, José Custódio Pereira, João Lopes da Costa, a rogo de Manuel da Costa, Celestino Domingues Martins, José Francisco de Oliveira Júnior, Miguel da Silva Pereira, Manuel Lopes dos Santos Murado, António Gomes de Carvalho, Luís Murado Torres, António Gomes dos Santos Reis, Manuel Fernandes da Silva Campos, Manuel José de Oliveira, a rogo de João Gonçalves Ferreira, Manuel José de Oliveira, José Joaquim Rodrigues, Delfim da Costa Machado, Joaquim António Machado, José da Silva Malta, a rogo de Manuel Martins Alves, Delfim da Costa Machado, António da Costa Sousa, José da Silva Leitão, Celestino da Costa Raposo, António Gonçalves Ferreira Matias, António da Silva Malta, António Fernandes Lopes, Domingos Barbosa de Oliveira, Agostinho da Costa Lopes, António da Costa Araújo, António Domingues Gomes, Joaquim Gonçalves Xavier, José Joaquim dos Santos Júnior, Adelino da Silva Ferreira, José Araújo, Celestino Manuel dos Santos, José da Silva Pereira, Alexandre Gomes de Moura, Lino António Ferreira, António José Ferreira, João da Costa Ramos, Francisco José de Andrade, A rogo de Joaquim Lopes da Fonseca, José Fernandes Campos Fontinhas, José Marques, a rogo de António José Carvalho, Cândido Manuel dos Santos, a rogo de José Avelino da Costa Faria, João da Costa Ramos, Alexandrino Lopes da Silva, Carlos Gomes dos Santos Reis, Joaquim António da Costa, José da Silva Campos, Manuel Francisco dos Santos.
O Presidente, depois de ouvir ler a referida petição, que lhe foi entregue em acto contínuo, disse que ia mandá-la exarar na acta desta sessão e extrair uma cópia, enviando-a ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, acompanhada do competente ofício, pedindo ao Ilustre Chefe do Estado o deferimento da pretensão dos suplicantes. O Presidente, continuando com o uso da palavra, disse que, visto a hora estar já um pouco adiantada, marcava uma sessão extraordinária para o dia seis, à hora regulamentar, a fim de apresentar as contas da gerência da Junta da sua presidência, do ano findo, bem como o orçamento ordinário para o corrente ano. Mandou fazer isto público por meio de um edital afixado no lugar do costume e lavrar a competente acta, encerrando a sessão.
E eu, Joaquim Alves de Sousa, secretário interino desta Junta, a subscrevi. Ressalvo a rasura que diz: para paroquianos, - Carvalho – e João.
O Presidente, Manuel Joaquim de Almeida
Os Vogais, António Alves de Sousa
Os Vogais, Manuel Lopes da Silva
Os Vogais, António Lopes de Sousa Campos
Os vogais, Luís Lopes Alves da Silva

Jugos e oratórios particulares

O que junta aqui dois objectos de usos tão distintos, jugos (de parada) e oratórios, é o seu carácter artístico.
Conhecemos apenas um jugo balasarense que remonta a estes anos de há um século atrás: data de 1908. Mas vamos apresentar dois, um, um pouco anterior, de 1897, e outro, ligeiramente posterior, de 1916.
Os lavradores abastados sentiram vontade de ostentar a sua força económica. Para isso serviam as paradas agrícolas.
Os jugos são produtos de arte popular muito estudados e valorizados. Há sobre eles uma monografia intitulada Sistemas de Atrelagem dos Bois em Portugal, de que são autores Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira. Os de Balasar pertencem geralmente à “variante do Minho” e são jugos “de tábua” e do “sistema jugular e cornal”. São estes os jugos portugueses que ostentam um trabalho artístico mais rico.
Para atrelar um carro de bois tradicional a uma junta de bovinos não era preciso mais que uma canga bastante simples. Por isso, o jugo era sobretudo um luxo e aquela grossa tábua vertical tornou-se um espaço para a afirmação de valores: económicos, religiosos, estéticos. Aqueles vazamentos, aqueles frisos, aqueles motivos vegetalistas, com plantas estilizadas e rosáceas, e a composição central – quase um medalhão – não acrescentam nada de funcional.

Uma recente exposição de oratórios balasarenses mostrou como as pessoas da freguesia investiram nestes objectos de devoção. Vimos lá uma boa dezena deles de uma qualidade artística invejável e em excelente estado de conservação. Os mais deles já se encontrariam em Balasar há um século atrás.

Fontainhas

Por estranho que pareça, no hoje tão progressivo lugar das Fontainhas, antes de se construir a estação do caminho-de-ferro não existia nada. Nem o nome do lugar.
No princípio do século passado passado, porém, já laborava a Fábrica da Cal (forno). Entretanto o Chefe Sá funda, em 1903, um Grupo Cénico que levou ao palco dramas sacros e comédias hilariantes e, em 1913, uma Escola de Ginástica, gratuita.

Imagens de cima para baixo:
Capa d’Os Proscritos. Os Proscritos são os Jesuítas, que a República fez expatriar.
Jugo de tábua, alto, do Sr. Abílio Laundes, de Gestrins; data de 1897 e é com certeza um dos mais belos da freguesia.
Jugo da Quinta da Covilhã, de 1916.

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